Poesias

Um pouco de poesia, não  minha





VULCÕES

Florbela Espanca

Tudo é frio e gelado. O gume dum punhal
Não tem a lividez sinistra da montanha
Quando a noite a inunda dum manto sem igual
De neve branca e fria onde o luar se banha.


No entanto que fogo, que lavas, a montanha
Oculta no seu seio de lividez fatal!
Tudo é quente lá dentro... e que paixão tamanha
A fria neve envolve em seu vestido ideal!


No gelo da indiferença ocultam-se as paixões
Como no gelo frio do cume da montanha
Se oculta a lava quente do seio dos vulcões...


Assim eu te falo alegre, friamente,
Sem um tremor da voz, mal sabes tu que estranha
Paixão palpita e ruge em mim doida e fremente!







POEMA EM LINHA RETA


Álvaro de Campos (heterônimo de Fernando Pessoa)


NUNCA CONHECI quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campões
em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco,
tantas vezes vil,

Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indisculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência
para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos
tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e
arrogante ,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais
ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos
moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido
emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me
tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas
coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste
mundo.


Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu
enxovalho,
Nunca foi senão príncipe  todos eles
príncipes  na vida...


Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma
infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma
cobardia!
Não, são todos o Ideal,se oiço e me falam.
Quem há nesse largo mundo que me confesse
que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos  mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido
traído,
Como posso eu falar com os meus superiores
sem titubear?
Eu que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.




No meio da noite

Adélia Prado

Acordei meu bem pra lhe contar meu sonho:
Sem apoio de mesa ou jarro eram
as buganvílias brancas destacadas no escuro.
Não fosforesciam, nem cheiravam, nem eram alvas.
Eram brancas no ramo, brancas de leite grosso.
No quarto escuro, a única visível coisa, o próprio ato de ver.
Como se sente o gosto da comida eu senti o que falavam:
“A ressurreição já está sendo urdida, os tubérculos
da alegria estão inchando úmidos, vão brotar sinos”.
Doía como um prazer.
Vendo que eu não mentia ele falou:
Aas mulheres são complicadas. Homem é tão singelo.
Eu sou singelo. Fica singela também.
Respondi que queria ser singela na mesma hora,
singela, singela, comecei a repetir singela.
A palavra destacou-se novíssima
Como as buganvílias do sonho. Me atropelou.
 O que que foi?  ele disse.
As buganvílias...
Como nenhum de nós podia ir mais além,
solucei alto e fui chorando, chorando,
até ficar singela e dormir de novo.

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