Entre ônibus, odores e o Bem-estar



Posso dizer que essa semana vivi um dia, no mínimo, peculiar. Depois de dois ônibus – ainda bem – com trajetos rápidos, porém, de viagens maçantes a estressantes. No primeiro, o motorista tinha um rádio sintonizado numa estação religiosa, cujas músicas de letras inaudíveis (por conta de todos os outros sons no entorno: buzinas, motores, trânsito, portas do ônibus que se abrem e se fecham...), permeava o seu bate-papo animado e ambíguo com um passageiro, nascido no Rio Grande do Sul e, segundo o seu relato, conhecedor do passado da President'a no período em que residiu no Sul. De fato, a conversa dos dois era tão confusa, quanto as músicas que tentavam inutilmente cantar alguma mensagem de fé...

Confesso que cheguei ao ponto final sem entender se eram contra ou a favor do governo atual; ora, eu ouvia "porque toda essa corrupção que ta aí...” Ou, "A Dilma bagunçou muito em Porto Alegre..." e ora ouvia: "eu não tenho do que me queixar, estou muito bem nesses últimos anos com esse governo." Mas afinal, o que me interessa o que eles pensam?! É que esse blá, blá, blá acompanhado por aquelas músicas ininteligíveis não me deixavam seque ouvir os meus pensamentos; e olha que são muitos e persistentes. Desci do coletivo com mais sono e mais confusa do que quando levantei da minha cama.

Segundo ônibus: entro, olho em direção à catraca e procuro o cobrador a fim de obter informações. Dou de cara com uma senhora de, não mais que 1,50 metro de altura, por volta de seus quase 60 anos (sinto muito se tiver menos. Mal humor dá muitas rugas!), me dirijo a ela com um sorriso e um "oi!", solenemente ignorado.

Mais incisiva pergunto se aquela linha vai pela Avenida do Estado. A cobradora que – graças à disseminação dos bilhetes eletrônicos – muito pouco tem de trabalho e não quer ser importunada por passageiras inconvenientes que não conhecem o itinerário, sem olhar para mim, e com um tom de muita bronca, vocifera que aquele ônibus vai pelo Cambuci e não pela Avenida do Estado. Respiro fundo e tento ser mais específica na minha pergunta, dizendo exatamente o ponto onde desceria que foi confirmado com uma carranca e um aceno de cabeça.

Imagine que fiquei nesse veículo o tempo de três pontos e consegui topar com essa cobradora gentilíssima, o motorista fechando o colega de outro ônibus e tendo a desfaçatez de parar no farol, abrir a porta e dar bronca no condutor que tomou a fechada, dizendo que se ele estava estressado era para ir para casa! Surpresa com a atitude daquele motorista, olho para uma passageira sentada à minha frente que chama a minha atenção para o forte cheiro de urina dentro do buzão. Entrei em pânico imaginando que alguém havia se mijado, o tempo secado, o fedor curtido e eu estava sentada bem onde tudo aconteceu... Socorro!

Contudo, tinha que ficar atenta ao ponto onde desceria. Talvez quando chegasse em casa, incinerasse minhas roupas e entrasse na descontaminação (do tipo das que aparecem nos filmes e seriados quando há vírus ou ameaças químicas). Esse pensamento não me consolou. Porém, uma alma caridosa me afastou de um surto de TOC – duvido que se você pensasse ter sentado na urina seca não surtaria também! – ao me avisar que aquela era a parada onde deveria ficar. Aliviada, sorri e agradeci a boa moça que, certamente, se compadeceu da forma como a simpática funcionária do nosso luxuoso transporte público havia me tratado.

Ufa, do mictório ambulante eu já tinha me livrado! Agora precisava me situar para alcançar o meu destino.

Depois de um esforço visual, consegui reconhecer o prédio aonde deveria ir.

Estava adiantada, podia caminhar com calma. Chego, finalmente ao meu destino, me informo onde fica o consultório, passo pelo guichê, ficha de paciente e coisas de praxe. Tomo um assento como eu gosto: afastada das outras pessoas. Prefiro o meu canto isolado para ficar observando, de preferência, sem conversas.

À minha frente, algumas fileiras com cadeiras, nem todas ocupadas e, acima da primeira fila, uma TV de tela plana exibindo o patético Bem-estar (me desculpe se algum leitor gosta desse programa; é a idiotice disfarçada de informação. Não me estendo, pois meus argumentos dariam outra crônica!). Embora a tela da televisão seja algo hipnótico, o qual por mais que se tente desviar, seus olhos sempre se voltam para ela; procurei não dar atenção. Mas num desses desvios traiçoeiros do olhar, me pego vendo um homem já bem passado dos 50, mostrando o seu processo de emagrecimento; mais uma vez: patético. Não, bizarro! E ele exibe, sem cerimônia, toda a pelanca caída pelos quilos perdidos: no abdome, no peito (imensas tetas derreadas!) e, acreditem, até na virilha; grotesco!

Foi nesse exato instante que meus olhos espantados se desviaram da televisão de vez e se voltaram para a tela do celular, onde comecei a escrever essa crônica. Mal havia dado 10h30 e o dia já se mostrava bem curioso; tinha que registrar.

A consulta, felizmente, foi satisfatória. Assim como a minha rápida passada na região da Praça da Sé. Já pela 25 de Março, confesso que esperava mais.

Não me pergunte como foi a volta... Está bem eu conto. Acredite, o primeiro ônibus que me conduziu do médico até o Parque D. Pedro também tinha um cheiro diferenciado; o odor agora era outro: maconha! Percorri com os olhos para tentar encontrar o "infrator", mas não vi nada. Pode ser que eu esteja por fora e já tenha no mercado o Cannabis deo Parfum, ou a Marijuana deo Colônia e alguém estivesse usando a novidade. O slogan seria algo do tipo: "Você vai viajar nessa fragrância.". Bem, viagens à parte, a minha logo chegou ao fim, literalmente, o trajeto não durou 10 minutos, logo, sem barato.

Entrei no segundo coletivo depois de minhas andanças pelo centro. Subi, criei coragem e aspirei bem o aroma para me certificar que não estava entrando em outra experiência olfativa estranha; tudo ok. Pego um banco na janela – o sol estava inclemente e o tempo seco (como de costume ultimamente) – aguardo o motorista para sairmos do terminal e seguirmos. A região da Zona Cerealista estava travada e eu já bem cansada pelas caminhadas e pelo dia esquisito. Mas para coroar as minhas excêntricas experiências no transporte público nesse dia, senta ao meu lado uma senhora, toda esbaforida, dizendo estar mudando de lugar para fugir do sol e se alarga no minúsculo banco, me forçando ficar colada à janela. Para me acalmar, suspiro, trazendo aos meus pulmões uma boa dose do monóxido de carbono dos veículos parados ao nosso redor. Não satisfeita, tenta puxar assunto me perguntando onde era o ponto final e, posteriormente, onde passava aquela linha na volta. Minhas repostas foram corretas, cordiais, porém, sem margem para mais conversas. Sem problemas, a mulher começou a falar consigo mesma, depois parava e cantarolava algo, depois mexia nas sacolas que estavam junto aos seus pés, pegava algo e comia, depois mexia na bolsa, depois cantava, depois mexia na carteira, depois mexia na sacola, depois pegava algo no bolso de trás da calça, depois falava sozinha e voltava a mexer na sacola, e na bolsa e na carteira e no bolso de trás da calça... Seus enervantes gestos eram inversamente proporcionais ao trânsito e assim foi até chegarmos ao ponto final; Ponto final, minha aventura acabou: em casa sã e salva!




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