Como é?!




Nascida no início dos anos 1970, minha infância foi povoada por heroínas fascinantes; mulheres fortes, decididas, inteligentes, lindas e independentes. Cito aqui algumas delas, começando pela minha favorita: a Mulher Maravilha – adorava imitá-la com seu avião transparente, os braceletes e o laço da verdade – era  mesmo poderosa! Outra querida, Betty Boop, que aliás, era a minha amiga imaginária e, acredite, morava no rodapé do banheiro lá de casa. Havia tabém as lindas e sagazes Panteras e a Princesa Safiri, com direito a capa e espada, que se passava por menino para defender o seu trono.
Na adolescência, na segunda metade dos 1980, as mulheres eram donas do seu nariz, da sua vida e do seu corpo. Os exemplos eram os mais diversos: a repórter Zelda Scott, de Armação Ilimitada – que vivia numa boa com os dois surfistas, Lula e Juba – e adotaram o "menino de praia", Bacana; A personagem Alex, de Flash Dance, dançarina de uma boate à noite e soldadora em uma metalúrgica durante o dia. Sem citar o cenário musical: A cantora Simone que nos shows tinha uma cama em pleno palco, onde sensualmente fazia seus "Delírios e Delícias" para a plateia; Madonna quebrando tabus, a irreverência e originalidade da Blitz e Cyndi Lauper e toda a androginia desta época: Grace Jones, Boy Geoge, Prince, Spandau Balett, Everything But the Girl, entre outros. As novelas retratavam personagens femininas conquistando seu espaço e independência, 
como na primeira versão de Guerra dos Sexos; Raquel e Solange, ambas da novela Vale Tudo e ainda a mecânica Ana Machadão, de Cambalacho. Enfim, esses são alguns dos muitos exemplos dos quais cresci vendo e, algum grau, admirando e me inspirando. 




Além da ficção, na vida mais que real, fui cercada de mulheres independentes e batalhadoras. A mais admirável delas foi a minha avó materna  –  uma mulher de fibra, braço direito de minha bisavó, outra mulher notável  – ambas tocavam suas terras no Piauí, coisa que os homens da família não quiseram fazer... Mais tarde, minha avó veio para São Paulo para recomeçar sua vida, com minha mãe ainda pequena (que também pagou o preço dessa situação, sempre de cabeça erguida). Imaginem no início de 1960 uma mulher separada, nordestina e com uma filha para criar? E minha avó querida superou todas as dificuldades, sem perder sua doçura e carinho. Uma mulher doce e forte que enfrentou as adversidades e superou todas com uma dignidade única. Tenho a certeza de que hoje ela está num lugar muito iluminado, à altura da sua vida.
A minha avó paterna, matriarca, mama italiana, "cabelinho nas ventas", foi trabalhadora de tecelagem e membro do sindicato, em plenos anos de 1950! Ainda tive minhas tias-avó, irmãs de minha avó paterna, mulheres corajosas para a época de sua juventude. Uma delas foi viver ao lado de um homem que já havia sido casado e ambos ficaram juntos até que a morte os separou, felizes, independente das pressões e convenções da época; a outra encarou de frente todas as dificuldades de ser mãe solteira nos anos de 1940.
O leitor pode estar se perguntando onde quero chegar. Não, não se trata da minha auto biografia ou biografia familiar. Vou chegar ao cerne da questão, caro leitor!
O que quero dizer é que cresci vendo e acompanhando as mulheres ganharem espaço, quebrarem tabus, lutarem por seus direitos. E, de quebra, tenho DNA de mulheres fortes e à frente de seu tempo. Para mim é, no mínimo, estarrecedor ver a matéria de uma revista nacional de grande circulação enaltecer a vice-primeira-dama como uma mulher bela, recatada e do lar.
Junto a minha indignação a de muitas outras pessoas, cidadãos comuns e celebridades que pela Internet e redes sociais se manifestaram (com memes, fotos, textos, piadas...) sobre aquilo que virou o assunto da semana. Claro, ver tal situação com olhos humorados é uma forma engraçada e inteligente de protesto. Mas o assunto logo perde a graça se olharmos nas entrelinhas e vermos o que há por trás de um discurso como esse. Vamos a algumas questões:
Mas o que é ser Bela? Se formos buscar o conceito de belo, encontraremos o seguinte: do latim bellus, que significa “lindo, bonito, encantador”. Já o dicionário Houaiss define o belo como algo que tem forma ou aparência agradável, perfeita, harmoniosa. Que desperta sentimentos de admiração, de grandeza, de perfeição. Ainda podemos encontrar uma estreita correlação entre o belo e o bom, ou seja, em diversas épocas o que era belo, era também o bom.
Quanto à Recatada: mulher discreta; educada; Por definição, é a mulher que se veste e se comporta de forma discreta e educada, pode ser extrovertida, sem parecer vulgar. É a decência, do latim decentĭa, a compostura e a honestidade de cada pessoa. O conceito permite fazer referência à dignidade nos atos e nas palavras.
E a última, porém não menos importante das qualidades, Do Lar: segundo a Wikipédia, é o termo, em direito do trabalho e previdenciário que define a mulher que, casada ou não, trabalha exclusivamente para a própria família, não exercendo atividade remunerada, ou esta não pode ser considerada habitual e principal.
Muito bem, juntando os três predicados de Marcela Temer, temos o seguinte panorama: Como a revista já dá por certa a promoção de vice para primeira-dama, Marcela passa a configurar um modelo de mulher a ser admirada, seguida, imitada... o belo que devemos contemplar; o recato que temos que seguir e a dedicação ao lar, marido e filhos que devemos ter. A mulher perfeita e ideal que todas nós devemos ser, em contraponto à Presidente (sem defesas, apenas colocando os fatos!) uma mulher separada, ex-combatente da ditadura militar, nada delicada, bela e/ou carismática.Veja (sem trocadilhos!) que absurdo! Em pleno século XXI, somos obrigados a nos deparar com algo tão anos 1950. 

Porém, desmascarando os ridículos paradigmas colocados pela revista (detalhe: a matéria foi escrita por uma mulher!), os mesmos conceitos usados como atributos para descrever essa mulher fantástica são totalmente relativos e aplicáveis a cada uma e a todas nós mulheres, sendo exatamente quem somos. Viva! Tomemos o conceito de belo pela filosofia e encontraremos Sócrates afirmando que "Toda beleza é difícil", no sentido de tentar definir o que é ou não belo. Quanto ao recato, a própria definição fala por si só, não é o fato de uma mulher usar vestidos na altura do joelho que a faz respeitável, mas sim sua postura, sua conduta em tudo o que diz e faz. E do lar, essa é a melhor de todas, quantas de nós mulheres não temos jornadas duplas ou triplas (preço da nossa emancipação), não ganhamos a igualdade, tivemos a superação! Muitas trabalham fora, encarregam-se de todos os afazeres domésticos, dos filhos e também cuidam de si, para estarem bem consigo mesmas e com os que amam.
Sim, somos do lar, do trabalho, do bar (como bem disseram...), da terra, do ar, do mar, do espaço e de onde quisermos! Já avançamos bastante e ainda temos muito o que conquistar, não é uma revista – que de quando, em quando vira motivo de chacotas – que vai nos dizer como devemos ser, quem temos que admirar ou copiar. 

Somos donas da nossa casa, do nosso nariz e da nossa vida. Retrocessos, em qualquer sentido, jamais!'     

Comentários

  1. Lindo texto.
    Te admiro muito Patricia Françozo

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  2. Excelente texto Patricia Françozo!!
    Lutar sempre!!
    Retroceder, jamais!!

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  3. Belas, recatadas e do lar? Nos inclua fora disso, como diria a Magda. As mulheres obtiveram muitas conquistas ao longo da história, Pat, mas um conteúdo infeliz como aquele demonstra que ainda há muito para ser feito. Beijinhos e vamos à luta sempre!

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  4. Elaine Ribeiro27 abril, 2016 00:03

    "Retrocessos, em qualquer sentido, jamais!!". Belo texto, Patricia !! Parabéns !

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  5. Que emocionante, Patricia!Bela!

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  6. Texto Maravilhosoooo!

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  7. Que lindo!!!!

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  8. Essa mensagem não pode ter prazo de validade, expirar após semana de publicação, como parece acontecer com qualquer notícia relevante. A linha é muito tênue nesta questão... E fica evidente a proposta de controle da narrativa pela revista... De revelar a mulher como aparato estético para aquele pretenso vice de imagem pesada, velha, antiquada. Para além, como bem lembrou, de inverter qualquer apropriação da presidente como espelho, como Presidenta que é, como guerrilheira! E o pior é que tenho visto muitas mulheres questionando resposta à matéria como se nossa intenção fosse o cerceamento.

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  9. Tatiana Felipe09 maio, 2016 21:21

    belo texto q como sempre convida a reflexão!

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  10. Rosi Mendonça13 maio, 2016 22:56

    Um texto com reflexão muito legítima e de quebra ainda dá conhecer um pouquinho da tua história! Parabéns.

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